Inshalá, vamos entrar na medina de Fès

Entrar na medina de Fès foi para mim um dos momentos mais esperados da viagem ao Marrocos. Depois de tanto ler sobre o local, em casa antes de viajar e durante o vôo para Madri, não tem como a curiosidade e a imaginação não aumentarem e criarem várias versões sobre como seria estar dentro da mais antiga medina do mundo árabe.

São tantos casos contados pelos turistas e guias e tantos anos de história dentro daqueles muros que ficamos extasiados só de atravessar os portões e sentir de perto o que é a vida dentro dos muros da medina.

Porém, antes de atravessar os portões e vivenciar o cotidiano mais puramente marroquino, nós subimos até o museu Borj Nord para termos uma magnífica vista da medina. O Borj Nord abriga o museu de armamento com uma coleção notável das armas feitas ou usadas no Marrocos.

Exterior do Borj Nord, o museu de armas fabricadas ou usadas no Marrocos

O Borj Nord era inicialmente um forte construído no século XVI, fazendo parte das muralhas de proteção da cidade, que posteriormente foi transformado no museu de armas, seguindo a tradição militar do local. São mais de 5000 peças em exibição divididas em 13 salas, incluindo armas do período pré-histórico até rifles modernos. A coleção é formada principalmente por doações da família real. Além do acervo marroquino há peças de origens européia, indiana e asiática.

Na verdade, esse não é o tipo de museu que gosto de visitar, mas, com certeza, a subida até o Borj Nord compensa pela vista que se tem da medina e dos seus arredores.

Medina de Fès vista do Borj Nord

Olhando dali de cima, a medina parece um local calmo e tranquilo, nem de longe deixando transparecer a agitação e barulho causados pela multidão que habita, transita, estuda, reza e trabalha por trás dos muros.

Estando ali, no alto do Borj Nord, admirando a bela paisagem formada pela medina com as montanhas ao fundo, naquela paz e quietude, a ansiedade para descer e atravessar os muros da cidade antiga aumentava cada vez mais.

Uma visão mais próxima da medina mostrando o amontoado de habitações, comércios e mesquitas

De lá de cima, também é possível avistar as ruínas das Tumbas Merenidas, rodeadas por uma belíssíma paisagem formada pela vegetação e pelas montanhas ao fundo. O local onde se encontram as tumbas, conhecido como Al Qolla, foi escolhido no século XIV para servir de necrópole real.

Lá foram enterrados vários sultões de linhagem real, porém hoje em dia o local encontra-se em ruínas. De fato, a paisagem em volta chama mais atenção dos que as tumbas somente.

Ruínas das Tumbas Merenidas vistas do Borj Nord

Após descer do Borj Nord, ainda passamos pelas muralhas do Kasbah Cherarda, um forte construído em 1670 pelo sultão Moulay Rashid com o objetivo de manter afastados as tribos bérberes do deserto. São no total 15 km de impressionantes muralhas que protegiam o suprimento de grãos dos ataques inimigos.

Os bérberes são na verdade os primeiros povos a habitarem no Marrocos, sendo que os árabes invadiram depois o local. Existe uma grande diferença cultural entre bérberes e árabes, incluindo idioma, crenças e hábitos, o que leva a uma certa rivalidade entre os dois povos até os dias de hoje.

Trecho das muralhas do Kasbah Cherarda. Os furos nas paredes são devido ao processo de restauração conduzido pela UNESCO

A medida em que nos aproximávamos da medina, maior era o número de pessoas na rua. Quando passamos de frente ao portão Bab Ftouh, um dos principais portões de entrada, vimos uma multidão de pessoas se espremendo por detrás dos muros. A mesma cena se repetiu quando passamos próximo ao Bab Boujeloud, outro imponente portão principal.

Isso era em parte justificável pois era véspera de um importante feriado religioso conhecido como O Sacrifício de Abraão. Por causa disso, todos os marroquinos estavam se preparando para a festa religiosa a ser celebrada no dia seguinte por todo o país.  O feriado e a sua comemoração serão em breve descritos em outro post, devido ao caráter forte da data e o tipo de comemoração, principalmente aos olhos de turistas ocidentais como nós.

Multidão de pessoas vista pelo lado de fora do Bab Boujeloud, uma das entradas principais para a medina
Nosso simpático guia explicando sobre as casas existentes dentro da medina

É importante saber que é totalmente necessária a presença de um guia para acompanhar a visita. Mesmo para mochileiros de plantão e viajantes de carteirinha experientes, é um risco desnecessário se aventurar pelas ruelas da medina sem a compania de um guia.

São 9400 ruelas espremidas dentro de 15 km de muralhas. A chance de alguém se perder lá dentro é bem grande.

E isso inclui até mesmo os próprios marroquinos, pois eu vi no noticiário da TV local, à noite, uma reportagem sobre pessoas desaparecidas que foram vistas pela última vez na medina.

Outra vantagem de se ter um guia é que ele pode explicar melhor tudo o que é visto na medina, suas contruções, seu comércio, suas mesquitas. São informações que enriquecem o passeio e nos dão um prazer maior por estar conhecendo um mundo tão diferente do nosso.

Nosso guia era muito simpático e bem humorado. Antes de entrarmos,  ele deixou bem claro o risco de se perder lá dentro, quando disse alegremente:

Inshalá, vamos entrar na medida e Inshalá sairemos de lá.

Inshalá é uma expressão árabe usada à exaustão pelos marroquinos e quer dizer “Se Deus quiser”. Bom, depois de ouvir isso, nossa vontade em conhecer as ruelas da medina aumentou ainda mais.

Quando atravessamos o portão para entrar na medina foi como se tivéssemos sido transportados para outro século. É como voltar no tempo ou estar em um filme como aqueles que passavam antigamente na Sessão da Tarde. É outro mundo, outra realidade, outra cultura. As palavras parecem poucas para descrever toda a sensação que temos por estar lá, é preciso vivenciar para melhor compreender.

Estando espremida no meio da multidão, o primeiro pensamento que vem à tona é “Socorro, me tirem daqui”. O segundo pensamento ” Espere um pouco, parece interessante” e o terceiro e definitivo é ” Oba, me deixem aqui, isso é realmente divertido”.

A medina é formada por uma confusão de pessoas e bichos se movimentando, rezando, fazendo comércio, enfim vivendo o dia a dia marroquino. Ali nossos sentidos ficam aguçados, visão, tato, olfato e audição são bombardeados com imagens, cheiros, sons, objetos que combinam e diferem ao mesmo tempo, formando uma estranha, porém instigante sinfonia.

Pessoas se espremendo nas ruelas da medina

Medina em árabe significa cidade antiga. É o centro urbano em que se vivia, e que ainda se vive, em muitas das cidades árabes. Na medina de Fès (Fés el Bali) vivem cerca de 500 mil pessoas que habitam e transitam por suas ruas.

O comércio é formado pelo que poderíamos chamar de quiosques ou bancas, um do lado do outro, onde são vendidos cereais, carnes, utensílios domésticos, roupas e quaquer outra coisa que se queira comprar, tudo misturado. Algumas lojas são maiores formadas por casas espaçosas. São as lojas mais especializadas que vendem tapetes, roupas e especiarias.

Loja de azeitonas em uma das ruas da medina. As azeitonas são altamente apreciadas pelos marroquinos, sendo servidas inclusive no café da manhã

Quanto ao comércio de alimentos, laticínios, carnes e peixes, podemos dizer que eles desconhecem qualquer conceito de vigilância sanitária. Não há refrigeração e tudo fica muito exposto. Vimos até mesmo maços de coentro distribuidos em tapetes no chão, próximos aos pés das pessoas e mulas. Isso me faz pensar quão bom deve ser o sistema imunológico dos marroquinos.

Nos açougues é vendido de tudo, desde carnes de carneiros até de camelos. Todas as partes são apreciadas, inclusive as cabeças. Algumas placas anunciam em específico o preço das cabeças. Essas carnes também são vendidas sem refrigeração ou qualquer outra medida de higiene e ficam expostas próximas à passagem de pessoas, mulas e o que mais estiver transitando no local.

Cabeça de camelo sendo vendida em um açougue. Qualquer tipo de carne serve como fonte de alimento

Na medina não é possível entrar carros, então o transporte é feito com mulas que são conhecidas como os taxis da medina. Quando se escuta alguém falando “Balak Balak” é porque está passando com uma mula e por isso pede licença. Nesse caso é bom se espremer contra uma das paredes ou bancas para deixa-los passar, pois como dizia nosso guia, esse é um tipo de taxi que pode morder.

Taxis da medina

Escutamos muitos” Balak Balak” e era sempre uma diversão pois todos do grupo começavam a gritar Balak Balak também, juntamente com o dono da mula, porém obviamente os marroquinos eram bem mais discretos com o Balak do que nós viajantes admirados.

Lavadores de lã executam suas tarefas em uma das ruelas da medina

Para quem gosta de bichos e tem por hábito e crença defender os animais, como eu, a visão das mulas sobrecarregadas de peso, com a língua para fora, não é muito agradável. Dá pena dos pobres bichos trabalhando tão arduamente, carregando alimentos, tecidos, objetos pessoais e tudo o mais que puder ser colocado em suas costas.

O que não é carregado pelas mulas, acaba sendo transportado por carrinhos de mão ou levado nas costas das pessoas. Mesmo com pena das mulas, nota-se que a vida também não é fácil para os habitantes da medina e pessoas que necessitam transitar por lá diariamente.

 

Foi na medina de Fès que as cenas da novela O Clone foram gravadas. Curiosamente, eles lembram desse fato até hoje se referindo como a “famosa novela brasileira”.

As casas habitadas parecem ser muito simples vistas por fora, pois vemos apenas a porta de entrada, porém na verdade são grandes e espaçosas por dentro. Seguindo a arquitetura típica árabe, há um corredor por trás da porta de entrada que leva para um átrio central, alguns com fonte de água do meio, rodeado pelos cômodos.

No segundo andar ficam os quartos, geralmente espaçosos também e no último andar o terraço, que alguns usam como varanda ou quintal. É comum ver ali alguns varais com roupas estendidas para secarem.

A maioria das casas também possuem comunicação entre si, assim as mulheres poderiam visitar umas às outras sem precisarem sair nas ruas. Dessa forma, elas permaneciam grande parte do tempo dentro das moradias.

No alto das casas é possível ver pequenas janelas com grades de ferro feitas com desenhos arabescos. Essas janelinhas serviam para permitir às mulheres que vissem a movimentação das ruas sem serem vistas por quem lá estivesse passando.

Outro ponto em comum das casas dentro da medina é que elas não possuem forno, pois seria impossível assar alguma coisa nas casas sem “poluir” o ar da medina. Há um forno grande e comunitário que os moradores usam. É comum ver várias meninas novas carregando sobre as cabeças ou nas mãos tabuleiros de pães para assar ou recém assados no forno comunitário.

A estrutura interna das casas é bem visível nas lojas de tapetes ou couro que visitamos. As lojas, assim como as compras tão desejadas para quem vai ao Marrocos, serão melhor detalhadas em outro post. Isso porque comprar no Marrocos não é uma atividade qualquer, leva tempo e dedicação para o extenso processo de barganha tão característico do país.

Parecem estranhos, mas esses vegetais secos à venda são usados como palito de dentes pelos marroquinos

Os únicos momentos em que a vida dentro dos muros da medina parece se acalmar um pouco são durante as chamadas para oração. Nessa hora, várias pessoas se dirigem à mesquita mais próxima para orar. É nítida a mudança de humor nas ruas e comércios. O respeito pela fé e crença fala mais alto do que qualquer atividade cotidiana.

Uma rua incrivelmente calma e vazia durante o chamado para a oração. Algumas lojas já estão fechadas por causa do feriado religioso

Para que todos possam se dirigir à mesquita, há por todas as ruas uma linha formada por círculos salientes nas paredes. Essas bolinhas existentes por todos os lados servem para guiar os cegos, que tocando nas bolinhas conseguem se locomover em direção às mesquitas e assim cumprirem as obrigações religiosas.

Quando termina o chamado, a vida volta a pulsar freneticamente em todas as ruelas e comércios existentes.

Tâmaras,passas e outras frutas secas de um lado…
… e uma loja de vestidos ricamente bordados do outro

Estando dentro da medina, não se sente vontade de sair. Sem dúvida, é um mundo diferente, algo que parece ser possível apenas na imaginação ou nos contos árabes. Visitamos o local durante o dia e à noite, e cada momento foi prazeiroso e memorável, mesmo com toda a agitação da multidão, aumentada ainda mais por ser a véspera do feriado religioso, mesmo com a presença das mulas, carneiros e outros bichos se misturando com as pessoas. No final, tudo era novo e fascinante.

Vendedor de perfumes trabalhando à noite
Confusão em uma das lojas da medina

Para quem vai ao Marrocos, a visita à medina de Fès é com certeza um ponto obrigatório. Tanto por ser a medina mais antiga do mundo árabe, quanto por ser um experiência única, com direito a sermos transportados para outra época, um período onde o tempo permaneceu o mesmo, sem se alterar apesar de todas as mudanças ocorridas no mundo tecnológico em que vivemos hoje em dia.

De todos os lugares que visitei no Marrocos, a medina de Fès é um dos que mais me lembro com saudade e com uma imensa vontade de voltar para vivenciar novamente toda a confusão, aglomeração e barulho existentes por detrás das muralhas. Não é à toa que a medina faz parte do patrimônio mundial protegido pela UNESCO.

À noite, os muros da medina parecem ainda mais imponentes

 

Lavadores de lã executam suas tarefas em uma das ruelas da medina

Para quem gosta de bichos e tem por hábito e crença defender os animais, como eu, a visão das mulas sobrecarregadas de peso, com a língua para fora, não é muito agradável. Dá pena dos pobres bichos trabalhando tão arduamente.

5 pensou em “Inshalá, vamos entrar na medina de Fès

  1. Oi Valéria,
    cheguei ao seu blog por um acaso e acabei de ler esse texto sobre Fès, que delícia! Coincidentemente visitei o Marrocos no ano passado e já escrevi alguns textos sobre lá no meu blog (viajologoexisto.wordpress.com). Ainda não falei sobre Fès, mas pretendo fazê-lo em breve! Suas sensações na medina me lembraram muito as minhas próprias, mas, acredite, eu me aventurei sozinho pela medina (junto com minha acompanhante) e não nos perdemos! É só ficar nas ruas principais, prestar atenção, que dá tudo certo. Mas concordo que andar com um guia também pode ser interessante, com toda a informação que ele deve passar.
    Também vi que você escreveu sobre Berlim, e eu também tenho alguns textos sobre lá. Amo de paixão aquela cidade!
    Abraços e parabéns pelo blog!

    1. Olá Tiago, obrigada pelos seus comentários. A medina é realmente algo extraordinário. Aguarde que novos posts sobre o Marrocos serão escritos. Também adoro Berlim, pretendo voltar na Alemanha para visitar o interior que ainda não conheço.
      Abraços

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